top of page

Parecer: Ética em pesquisa com seres humanos no Brasil e a inconstitucionalidade da Lei nº 14.874/24.

Publication Date

10 October 2025

DOI

Authors

Mariana Cunha e Melo

Summary

Consulta-me a Sociedade Brasileira de Bioética (SBB) sobre a constitucionalidade da Lei nº 14.874/2024, que dispõe sobre a pesquisa com seres humanos e institui o Sistema Nacional de Ética em Pesquisa com Seres Humanos, e de seu decreto regulamentador (Decreto nº 12.651/2025). A lei teve origem no Projeto de Lei do Senado nº 200/2015, de autoria da Senadora Ana Amélia e dos Senadores Waldemir Moka e Walter Pinheiro. Foi objeto de substitutivo na Câmara dos Deputados (Projeto de Lei nº 7.082/2017) e voltou ao Senado como Projeto de Lei do Senado nº 6.007/2023.

A consulente informa que: (i) em 1996, o Conselho Nacional de Saúde – CNS instituiu a Comissão Nacional de Ética em Pesquisa – CONEP para, em conjunto com os Comitês de Ética em Pesquisa – CEPs do país, fazer o controle ético de pesquisa com seres humanos; (ii) esse sistema de controle ficou conhecido como Sistema CEP/CONEP, que atuou na defesa dos direitos de participantes de pesquisa até a promulgação da Lei nº 14.874/24; (iii) a lei sob análise criou o Sistema Nacional de Ética em Pesquisa com Seres Humanos sem qualquer regra de transição para o Sistema CEP/CONEP ou tentativa de harmonização com os parâmetros éticos antes definidos nas resoluções do CNS, como se fosse a primeira positivação sobre o tema no direito brasileiro; (iv) a lei determinou a criação de um órgão colegiado independente na estrutura do Ministério da Saúde para exercer competências e atribuições que eram até então do CNS; e (v) em 07 de agosto de 2025, foi publicado decreto regulamentador da lei (Decreto nº 12.651/2025). Por fim, a consulente informa que, na prática, a lei joga por terra quase trinta anos de memória institucional e seu histórico de proteção aos sujeitos de pesquisa no Brasil.

Diante disso, a consulente apresenta os seguintes questionamentos:

(i) Antes da edição da Lei nº 14.874/24, havia um marco legal que desse lastro jurídico para a atuação do Conselho Nacional de Saúde e da Comissão Nacional de Ética em Pesquisa na definição e controle de padrões éticos de pesquisas envolvendo seres humanos?
(ii) Poderia a Lei nº 14.874/24 criar órgão para substituir a CONEP no controle ético de pesquisas com seres humanos, definir suas atribuições e sua estrutura organizacional no Ministério da Saúde e subordiná-lo a órgão responsável pela ciência e tecnologia?
(iii) A proteção conferida pela Lei nº 14.874/24 aos participantes de pesquisa passa pelo crivo constitucional de defesa da dignidade humana quanto ao requisito de consentimento livre e esclarecido?

A resposta às três perguntas revela que a Lei nº 14.874/2024: (i) usurpa a competência do Presidente da República para dispor sobre as atribuições e organização do Ministério da Saúde, em flagrante violação à separação de poderes (CF/88, arts. 61, § 1º, II, e e 84, VI, a); (ii) define desenho institucional que não seria capaz, mesmo em tese, de produzir resultados compatíveis com a Constituição, muito menos de atingir os objetivos aos quais se propõe (CF/88, arts. 1º, III; 5º, caput e II e X; 6º e 196); e (iii) impõe restrição injustificada ao princípio da participação social em matéria de saúde (CF/88 art. 198, III). Por fim, no que se aplica aos direitos básicos dos participantes de pesquisas, a lei viola disposição constitucional literal e passa por baixo do crivo mínimo de proteção ao direito à saúde, à autonomia da vontade e à dignidade humana, tais como interpretados por inúmeros precedentes do Supremo Tribunal Federal (CF/88, arts. 1º, III; 5º, caput e II e X; 6º e 196; e Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, art. 15 c/c art. 5º, § 3º da CF/88).

A conclusão do presente trabalho é que a criação da Instância Nacional de Ética em Pesquisa é eivada de vícios formais e materiais que conduzem à sua inconstitucionalidade. Como a criação dessa figura é central ao Sistema Nacional de Ética em Pesquisa com Seres Humanos que a lei institui, sua invalidade conduz à nulidade da Lei nº 14.874/24 como um todo e de seu decreto regulamentador (Decreto nº 12.651/25), por arrastamento, nos termos da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal. A bem da técnica – e para responder a todos os questionamentos da consulente –, o estudo também demonstra que a lei afronta disposição constitucional literal sobre a exigência de consentimento livre e esclarecido para qualquer pesquisa em seres humanos.

Full publication

bottom of page